Conta de maluco
Confusão de medidas derruba sonda espacial e mostra como é urgente esquecer pés
e polegadas
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Marcos Gusmão
A escola ensina que, para qualquer operação que envolva padrões diferentes de
pesos e medidas, é necessário fazer a conversão para um único sistema de
unidade. Sem isso, é confusão na certa. Na semana passada, a agência espacial
americana, a Nasa, admitiu que um erro primário como esse pode ter sido a causa
do desvio, e depois da perda, da sonda Mars Climate Orbiter *, que custou 125
milhões de dólares. A nave foi enviada ao espaço para estudar o clima de Marte e
espatifou-se ao entrar desastradamente na atmosfera marciana. Para o
constrangimento dos cientistas americanos, a única explicação é a sonda ter
recebido informações conflitantes dos controladores de vôo. Ou seja, ao se
aproximar do planeta vermelho, foi abastecida de dados em metro e em quilograma,
do Sistema Métrico Decimal, e também em pé e em libra, unidades do Sistema
Imperial Britânico. A comissão de cientistas que investiga o caso acredita que
os programas de computador da Nasa não foram capazes de detectar as diferenças
entre valores expressos em dois sistemas.
O melhor
time de navegadores espaciais do mundo acabou com uma nave caríssima por causa
da teimosia dos Estados Unidos e de outros países de origem anglo-saxã em manter
esse sistema de medidas criado há oito séculos e que já deveria ter
virado peça de museu. "Somente o sistema métrico deveria ser usado", diz Lorde
Young, a presidente da Associação Métrica dos Estados Unidos. "Ele é a língua de
toda ciência sofisticada." De fato, é inconcebível para uma cabeça adaptada ao
sistema decimal a quantidade de cálculos necessária para trabalhar com medidas
como polegadas, jardas e pés. A dificuldade de associação rápida é assombrosa.
Um pé se
divide em 12 polegadas. A jarda tem 3 pés e uma milha equivale a 1 760 jardas.
Para responder quantas polegadas existem em uma milha sem fritar os neurônios só
apelando de imediato para uma calculadora. São 63 360 polegadas. E em três
quartos de milha? É melhor esquecer. Pelo sistema métrico, para se chegar a
quantos centímetros existem em um quilômetro, é só pensar nas 100 subdivisões do
metro e acrescentar mais os três zeros do milhar. O resultado:
100000 centímetros em cada quilômetro. Em três quartos de quilômetro? Na ponta
da língua: 75 000 centímetros.
Para abastecer o carro, o inglês e o americano pedem o combustível em galão e
não em litro, bebe cerveja em pint e não em mililitro. Mede o peso em libra ou
onça. Para a temperatura adota um estranhíssimo sistema com ebulição a 212
graus, batizado como Fahrenheit e completamente diverso dos graus Celsius que o
resto do mundo usa. Quando se leva em conta a origem do sistemas então, parece
piada. Houve um tempo em que a jarda era a distância que ia do nariz à
extremidade do braço esticado do rei no poder, senhor de todos os padrões. O pé
era exatamente do tamanho do pé real e a polegada ia pelo mesmo caminho,
vinculada ao dedo do soberano. Hoje não é assim, óbvio. A polegada não é o dedão
da rainha Elizabeth II, mas sim 2,5 centímetros. Para se chegar à jarda também
não é preciso medir o braço real: fechou-se a questão em 91,4 centímetros. E o
pé, então, é uma lancha de 30,4 centímetros, que claramente não corresponde às
dimensões do de sua majestade.
Os
padrões do chamado Sistema Imperial Britânico foram adaptados ao sistema métrico
para poder funcionar como medidas modernas. Mesmo com os ingleses mantendo os
conceitos antropomórficos, o metro e as demais unidades do sistema
decimal acabaram vencendo a batalha", afirma Giorgio Moscati, professor do
Instituto de Física da Universidade de São Paulo e membro do Comitê
Internacional dos Pesos e Medidas. E por quê? Porque o metro já nasceu com
conceituação científica e filosófica e não apenas prática. Ele surgiu como uma
unidade de medida física imutável, no caso, a décima milionésima parte da
distância entre o Pólo Norte e o Equador, medida pelo meridiano que passa por
Paris. Foi um produto do iluminismo francês, para acabar com as medidas
arbitrárias da Antiguidade e da Idade Média ainda em vigor no século XVIII. E
até se sofisticou. Hoje ele é calculado com base no espaço percorrido pela luz
no vácuo em determinado período de tempo, o que permite uma calibragem de
instrumentos com precisão indiscutível.
O
problema é que, por motivos culturais diversos países, entre eles a maior
potência do planeta, relutam em abrir mão de suas medidas arcaicas. O que foi
disputa entre as pretensões imperiais da França e da Inglaterra nos últimos dois
séculos virou um problemão científico para o futuro, como prova a bobagem
cometida pelos cientistas da Nasa na semana retrasada. "Não dá para trocar as
medidas de uma hora para outra", explica o professor Moscati. "Assim como a
jarda é incompreensível para nós, o metro não passa de uma abstração para a
maioria dos americanos e ingleses", diz ele. O resultado é um conflito de
comunicação entre metade do planeta que pensa de um jeito e o outro lado que
pensa de outro, insustentável numa sociedade globalizada. Para resolver
pendengas como essa, na próxima segunda-feira a Conferência Geral dos Pesos e
Medidas se reúne mais uma vez em Paris, na França. Os especialistas discutirão
exatamente quais são as maneiras de acelerar o processo de unificação que
adotará definitivamente o sistema internacional de unidades, SI. que regulamenta
o metro, o quilograma, o litro e os graus Celsius como padrão. "A unificação no
padrão métrico decimal é inevitável", afirma Moscati, que participará da
reunião. Os Estados Unidos aderiram ao sistema internacional em 1959. Há quatro
anos, por força da União Européia, a Inglaterra resolveu dar adeus definitivo à
velharia baseada em pés, polegares e narizes reais. Em ambos os países, o
sistema métrico convive com o imperial, mas a maioria da população só faz contas
no estilo antigo. Por isso as trapalhadas como a ocorrida na Nasa. A confusão
está longe de acabar.
* Mars CIimate Orbiter: descompasso
entre metros e pés derrubou a sonda
p. 118 – 119 - 6 de outubro. 1999 Revista Veja
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